Certo dia detive-me, numa adega, a observar as suas longas teias de aranha. Algumas estavam cheias de pó, desfazendo-se em farrapos. Outras exibiam os seus fios de seda brilhantes, rodeando a sua autora - a aranha.
As aranhas são seres que sempre me inspiraram curiosidade e alguma repulsa. São belas, artisticamente desenhadas, de traços precisos, longos e esguios. Simétricas. A sua forma de andar é, contudo, algo pegajosa.... Subreptícia... Traiçoeira... E depois causa-me impressão a forma insensível como rodeiam as moscas, ainda vivas, naquela goma, e as deixam lá a agonizar.
A aranha mantém-se estática, como morta, por longos períodos. Mexe-se só quando sente o perigo, ou uma refeição. Resolve o problema rápida e eficazmente e volta à sua imobilidade. Ela sabe, não sei eu como, que uma mosca virá e a fará ganhar o seu dia.
Não duvida, quando faz a sua teia. Não se põe a pensar: será que este é lugar propício para apanhar moscas? Não corre o mundo em busca do lugar ideal para as suas teias. Fá-la e espera. Confia. E as moscas vêm.
Já a mosca é um ser que é incapaz de estar quieto. Voa nervosamente em círculos, na penumbra. De vez em quanto zanga-se com as outras moscas vizinhas e rodopiam, arreliadas umas em volta das outras... Depois assumem as suas trajectórias fúteis e voam... Como se algo invisível as impelisse continuamente a voar. Não sei como não se cansam... Provavelmente voam mesmo que cansadas, cumprindo o seu papel de moscas: até cair na teia e aí assumem um novo papel de comida de aranha. Penso que o seu estrebuchar, mais do que uma luta perdida pela vida, se destina a causar algum prazer sádico às aranhas - não deixa de ser uma forma de entrega.
Absorto na contemplação dos insectos, verifiquei que podemos igualmente dividir a humanidade em dois grupos, numa analogia taxonómica, em homens-mosca e homens-aranha. Não falamos de super-heróis, nada disso. Os homem-insecto, somos todos nós. Ilustremos com exemplos:
O vendedor, numa loja, é homem-aranha. Enche as suas prateleiras, decora a sua montra e espera que entrem os clientes-mosca. O caixeiro viajante é um vendedor-mosca, exercendo o seu múnus para uma série de potenciais compradores-aranha. O jogador de futebol é também mosca zumbindo no relvado, até ser sugado pelo seu empresário-aranha, pelo bancário-aranha, e assim por aí fora.
Já o professor, seja ele de assuntos académicos, ou mais pragmáticos, é uma mosca, que divide o seu trabalho entre escolas, centros de formação, e institutos com donos-aranha. A modelo é mosca. O fotógrafo é aranha. Os trabalhadores agrícolas sazonais de outrora, os ratinhos, os caramelos e os gaibéus eram as moscas, deslocando-se entre as teias dos latifundiários-aranha.
Mas a questão é infinitamente mais complexa e não se reduz à componente profissional. Nas relações amorosas há homens e mulheres moscas e aranhas.
Duas gerações atrás, os homens-mosca zumbiam pelos bares, entorpecendo a sua luxúria pelo tabaco, criando coragem nos copos até caírem nas teias das mulheres-aranha, que aguardavam sentadas nos seus bancos, porventura escoltadas pelas mães, um convite para dançar.
Hoje os papéis misturam-se: a adolescente-mosca, insegura da sua aparência, excede-se no álcool, na dança e nas palavras, na esperança de atrair as atenções do sabidão adolescente aranha, que se mantêm sorridente e confiante, a um dos lados da pista de dança na discoteca.
Já o adolescente-mosca, pergunta, tentando sorrir, e meio gaguejando: Posso-te conhecer? à sua congénere aranha.
Resumindo, atrair, seduzir, gostar, é coisa de aranha. Ser-se seduzido, apaixonar-se, é coisa de mosca.
Depois destas lucubrações, assaltou-me uma dúvida existencial: O escritor é tipicamente aranha, enredando os leitores-mosca, na teia da sua história... Mas, no que diz respeito aos relacionamentos, talvez por uma questão de tradicionalismo, reconheço ter cumprido zelosamente o meu masculino papel de mosca. Não sei se ascenderei algum dia à condição de aranha, ou se terminarei os meus dias debatendo-me em alguma teia... Não que isso me preocupe particularmente. Se assim fôr, debater-me-hei, quanto mais não seja, para proporcionar à minha prospectiva mulher-aranha, um espectáculo digno e suficientemente credível.
Conformado com a probabilidade da minha eterna mosquisse, voltei minhas atenções para uma realidade mais alargada: Haverão comunidades-mosca, países-mosca? Em segundos concluí que sim.
Portugal é o mais acabado exemplo de país-mosca... Zumbindo pelos mares, nos Descobrimentos, achando novas rotas e novos povos, para os entregar de bandeja aos ingleses e holandeses-aranha, alguns séculos depois. Zumbindo, na actualidade, já no parlamento europeu, cumprindo metas e alvos traçados pelos alemães-aranha.
Está na altura de despir a nossa mosquisse e assumir alguma aranhisse. É mister que deixemos de zumbir por esmolas. É mister que deixemos de nos envolver em questiúnculas tais como as moscas das adegas... que deixemos de consumir as nossas energias em debates estéreis, unicamente pela imperativa necessidade de debater e de ter razão.
Temos imperiosamente de reconstruir a teia dos nossos recursos e potencialidades, de modo a atrair os investidores-mosca. Há que dar valor ao que temos e que nem sequer é assim tão pouco.
A aranhisse, quiçá, talvez se aprenda...